Aproveitando a semana do aniversário de 149 anos da Igreja Presbiteriana do Brasil vou postar um texto a que tive acesso, quando era seminarista, em uma das aulas de história, ministrada pelo Rev. Wilson Santana, no Seminário Teológico Presbiteriano “Rev. José Manoel da Conceição” - SP. É um texto, na minha opinião, belíssimo, traduzido por Maria Amélia Rizzo em 1962.
Boa leitura!
“Uma criança nos nasceu”
Isaías 9:6
Um homem tinha duas filhas. O nascimento de cada uma custou-lhe um preço fabuloso. A primeira, a filha de sua alma, abriu os olhos para o mundo num país estanho, de povo diferente e língua incompreendida. Nas circunstâncias adversas que a cercavam, ninguém cria muito que sobrevivesse. Mas o pai, que se debatera ao extremo para conservar-lhe a vida, não perdia as esperanças. Só a Deus compete o dar ou tirar existência, mas o que dependesse dele seria feito.
Quando a primeira ainda mal deixara de engatinhar, nasceu-lhe outra – a filha do coração, que só lhe deveria trazer felicidade. Mas essa também custou-lhe um preço – o preço da vida da própria mãe.
Abatido, acabrunhado, ferido e triste, em pouco tempo o pai teve de enfrentar mais um problema: a segunda filha crescia forte e viçosa, mas a primeira – a primeira continuava a causar preocupações, dúvidas e ansiedades. Ninguém sabia ao certo se tomaria pé, se viveria. Não fosse ela, e o pai talvez tivesse arrumado as malas e voltado com a segunda para a sua terra, onde sem dúvida a vida lhe sorriria, onde talvez viesse a casar de novo, constituir um lar para a pequena e viver comodamente feliz. Mas, em virtude das circunstâncias, a primeira filha não podia ser transportada para parte alguma. Com os pretextos muito louváveis de cuidar carinhosamente da segunda e da própria saúde que já se ia abalando depois de tantas dificuldades, outro teria deixado a primeira filha aos cuidados de terceiros e partido. Mas pai é pai. Entre os sacrifícios exigidos pela filha de sua alma e a perspectiva de um futuro ameno e risonho em companhia da filha do coração, decidiu-se ele pela primeira. Amava a ambas; ambas precisavam dele. A segunda, forte e bem nutrida, cresceria em qualquer clima. Mas a primeira não podia ser removida.
E assim, ficou. Ficou lutando, para ver aquela criança mal formada em condições de dar os primeiros passos, de lutar, de enfrentar a vida por si.
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A segunda filha custara a vida da mãe, mas a primeira, em muito poucos anos, custaria a vida do pai, cujas lutas contínuas e permanência em país estranho começavam a se fazer sentir na saúde.
Antes de fechar os olhos, porém, esse pai extremoso chegou a ver de pé, embora ainda frágil, mas já com uma estrutura bem formada, a filha de sua alma.
Depois de sua morte a segunda filha, a filha do coração, foi reclamada pelos parentes e retornou à pátria. A primeira, a filha da alma que não podia ser transportada, ficou entregue aos cuidados carinhosos de pais adotivos e amigos devotados.
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Toda história tem um fim. Helen Murdoch Simonton, a segunda filha de Ashbel Green Simonton, faleceu em Baltimore, Maryland, nos Estados Unidos, a 7 de janeiro de 1952, com 88 anos.
A filha mais velha, a Igreja Presbiteriana do Brasil, completou cem anos a 12 de agosto de 1959.
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Fala-se muito sobre os inocentes que pagam pelos pecadores, mas quase ninguém se lembra dos inocentes que compartilham do sacrifício dos santos.
Helen pagou, pelo sacrifício dos pais, o preço da dupla orfandade.
Se, absorvido pelo desejo muito comum de usufruir uma vida feliz na companhia da filha carnal, Simonton tivesse abandonado a Igreja, Helen talvez não tivesse ficado órfã de pai tão cedo. E se ainda, antes disso, as alegrias da felicidade conjugal o houvessem arrebatado por completo a ponto de não seguir mais para o Brasil, onde estaria a Igreja Presbiteriana? É certo que mais tarde alguém apareceria para substituí-lo, mas Simonton seria contado entre os ausentes.
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A 19 de junho de 1959, ano em que a Igreja Presbiteriana, filha mais velha, filha da alma e do espírito de Ashbel Green Simonton celebrou o seu primeiro centenário, Helen Murdoch Simonton deveria completar noventa e cinco anos.
A orfandade de Helen, a filha carnal, foi o preço da vida da Igreja, a filha espiritual.
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Nesse dia, 19 de junho de 1959, aniversário de Helen, lembrei-me de fazer uma visita a Baltimore, onde, no Cemitério de Greenmount repousa a irmã desconhecida da Igreja Presbiteriana do Brasil.
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Nada mais inadequado, mais esquisito e mais fora de proporções do que um ramalhete de flores para homenagear a memória de alguém que sofreu, durante a vida toda, as mágoas da orfandade, para que a Igreja Brasileira pudesse ter tido um pai nos anos em que mais necessitava dele.
Quando depositava sobre a laje as flores amarelas e azuis misturadas na folhagem verde, lembrei-me das palavras várias vezes empregadas por Simonton: “Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos”.
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Viva, diante do Senhor, encontra-se Helen Simonton – que será sempre lembrada pela Igreja Brasileira como uma criancinha de três anos – em companhia da mãe que nunca veio a conhecer em vida.
Simonton, Inspirações de uma Existência
Trad.: Maria Amélia Rizzo
Ed. Rizzo – São Paulo – 1962