23 fevereiro 2018

Ensino e coerência: O grande desafio entre o saber e o fazer

An open bible with grass and a man walking towards a cross

O Senhor me concedeu o imenso privilégio de cuidar de suas ovelhas. Estou bem certo de que aquilo que aspirei, o episcopado, é, de fato, uma grande obra a se almejar (1Tm 3.1) e sou muito agradecido a Deus poder pastorear a Igreja Presbiteriana da Praia do Canto.

O ministério pastoral consiste, em grande parte, em se afadigar no ensino. Paulo afirmou a Timóteo que se ele expusesse a sã doutrina aos irmãos, seria um bom ministro de Cristo Jesus (1Tm 4.6). É claro que para isso ele precisaria também ser “padrão dos fiéis, na palavra, no procedimento, no amor, na fé, na pureza” (1Tm 4.12). Em outras palavras, a vida de Timóteo deveria ser coerente com “as palavras da fé e da boa doutrina” que ele seguia e precisava ensinar.

Como pastor, tenho procurado viver desta forma, o que é um grande desafio, não só para mim, mas também para aqueles que têm aprendido com o meu ensino, afinal o ensino visa à maturidade da igreja para que esta viva, também, de forma coerente com a fé que professa. Nessa caminhada de fé, somos alertados pela Escritura de que “a carne milita contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne, porque são opostos entre si” (Gl 5.17), daí a exortação para que, pelo Espírito, mortifiquemos os feitos do corpo (Rm 8.13). Essa é a luta cristã!

Entretanto, sei também que minha primeira responsabilidade é com um rebanho menor. O mesmo apóstolo que afirmou que o episcopado é uma excelente obra a se almejar listou entre os requisitos para o candidato que ele “governe bem a própria casa, criando os filhos sob disciplina, com todo o respeito (pois, se alguém não sabe governar a própria casa, como cuidará da igreja de Deus?)” (1Tm 3.4,5).

Tenho a grande alegria de ter uma esposa maravilhosa e dois lindos filhos que preciso pastorear. Com minha esposa, tenho procurado educar meus filhos na disciplina e admoestação do Senhor, o que também ensino a todos os pais que eu pastoreio ser sua responsabilidade em seus lares. Essa é outra luta constante, reservar tempo na correria diária com os compromissos do trabalho para estar ministrando a eles.

Quanto exorto minhas ovelhas, que são pais, a se dedicarem mais ao pastoreio do lar, não o faço como alguém que faz isso com muita facilidade, mas como alguém que, como eles, precisa lutar, não poucas vezes, com a indisposição, com a preguiça e com a vontade de fazer algo que nem é tão importante, mas que o coração, muitas vezes, anseia.

É nessa caminhada de pastoreio da família onde consigo perceber mais nitidamente as minhas falhas. É esse meu pequeno rebanho que percebe mais facilmente minhas incoerências e é, principalmente, junto dele que constato as minhas fraquezas, diante das quais rogo ao Senhor que me ajude a ser coerente com o meu ensino, pois estou convicto de que sem a pessoa do meu Redentor, Cristo Jesus, nada posso fazer (Jo 15.5).

Um dia desses, experimentei mais uma vez um desses momentos com minha filha mais velha, Fernanda, que tem apenas 8 anos e tem sido constantemente instruída. Ela já conhece muitas histórias bíblicas, alguns pontos doutrinários importantes, além de saber de cor as respostas às 148 perguntas do “Meu catecismo de doutrina cristã”. À medida que ela ia decorando, íamos explicando o que significava, na prática, aquilo que ela estava aprendendo. Isso tudo, fora as lições que ela aprende na Escola Dominical. Sou um privilegiado por poder ensina-la e ela uma privilegiada por estar em um lar que ama o Senhor, aprendendo tudo isso.

Pois bem, fui com minha família à casa de minha mãe e em determinado momento estávamos assentados no quintal, conversando com minhas irmãs. Com esse nosso mundo “digital”, houve um momento em que começamos a mostrar vídeos de esquisitices que acontecem no meio evangélico e que acabam virando motivo de deboches na internet. Coloquei um vídeo de um neopentecostal cantando que “era pipa avuada” e enquanto ríamos (eu e uma de minhas irmãs) Fernanda passou, foi ver do que estávamos rindo e ao ouvir a música perguntou com toda a inocência: “Isso não é tomar o nome de Deus em vão?”.

Instantes de silêncio constrangedor. Segundos que parecem ter durado muito mais tempo, até eu responder meio sem graça: “Sim, é”, para depois ouvir a pergunta que veio de volta: “E por que vocês estão assistindo?”. Não havia o que fazer, a não ser parar de assistir, envergonhado. Desse dia para cá, venho pensando em algumas questões:

1. Não posso baixar a guarda em momento algum. Momentos de descontração não são desculpa para o pecado. Mesmo na diversão é preciso honrar o nome do Salvador;

2. As ovelhas do meu pequeno rebanho precisam ver coerência em mim. Não posso cobrar dos meus filhos aquilo que eu mesmo não estou colocando em prática;

3. Preciso ser paciente com meus filhos. Citei algumas coisas que Fernanda já sabe sobre a Escritura, não para exalta-la, mas para fazer uma consideração. O problema é que, por saber que ela conhece o que deve ser feito, muitas vezes eu cobro dela um comportamento correto, ficando impaciente ao não ver mudanças que julgo que JÁ deveriam ter acontecido. A questão aqui é: Eu sei muito, mas muito mais do que ela e, ainda assim, estava a ver o tal vídeo “engraçado”. Não fosse a longanimidade de Deus comigo…;

4. Precisamos (eu, ela, meu filho, minha esposa e você que me lê) desesperadamente do Senhor Jesus Cristo. É uma realidade comprovada dia a dia. Nunca mudaremos por simplesmente saber alguma coisa. É verdade que a quem muito é dado dele muito será exigido (Lc 12.48), mas é igualmente verdadeiro que a mudança não se dá porque se conhece intelectualmente, mas pela aplicação da Palavra, realizada pelo Espírito de Cristo, no coração do pecador. Somente estando em Cristo e amparado por sua graça podemos saber e fazer;

5. Preciso lembrar em todo o momento que não é o que eu faço, mas o que Cristo fez, que me torna aceitável diante de Deus. De outra forma me tornarei, simplesmente, um legalista, esperando Deus me dar os parabéns por cumprir de forma exemplar e para a minha própria glória a sua Lei, que me foi dada para eu ser santo, me ajudar a morrer para mim mesmo e viver para a glória de Deus;

6. Preciso lembrar sempre de agradecer o perdão que tenho em Jesus Cristo, aquele que se deu por mim e que me libertou a fim de eu poder servir “a Deus de modo agradável, com reverência e santo temor” (Hb 12.28).

Louvo a Deus por meu pequeno rebanho. Por meio dele posso aprender a cada dia como me portar também diante das minhas outras ovelhas, parte do rebanho de Cristo que ele me confiou. Louvo a Deus pela vida comunitária com o povo de Deus, onde as circunstâncias acabam por revelar nossas fraquezas, nos fornecendo, assim, a oportunidade diária de, por meio de Cristo, crescer em graça e em conhecimento diante do Senhor.

Sigo olhando para Cristo, aquele que cumpriu perfeitamente toda a Lei, a fim de que eu pudesse ser reconciliado com o Pai, crescer em santidade e viver para a glória dele, como uma ovelha do seu rebanho, como pastor da minha família e como pastor da igreja que ele me confiou.

21 fevereiro 2018

Basta fazer com excelência? - Breve análise da afirmação de Tim Keller sobre a adoração

Resultado de imagem para louvor tim kellerEsta semana, lendo um livro do Pr. Tim Keller (pastor presbiteriano nos Estados Unidos com vários livros traduzidos para o português) em parceria com mais três autores (Carson, Hughes e Ashton), deparei-me com a seguinte informação:

“Muitas vezes incluímos músicos não cristãos em nossos cultos que têm dons e talentos maravilhosos. Não os usamos como solistas, mas os incorporamos aos nossos conjuntos. Acreditamos que isso se encaixa em uma ‘visão de mundo e vida’ reformada. A visão dualista em muitas igrejas evangélicas é que um cristão piedoso e sincero que seja um músico mediano será mais agradável a Deus do que um músico profissional não cristão”[1].

A pressuposição de Keller, que recentemente pode ser notada também em muitos cristãos, é de que a “graça comum de Deus”, responsável pelos dons que são dados indistintamente a cristãos e não cristãos, habilita um não cristão (até mesmo um ateu) a tomar parte ativa no culto e, ainda mais, que a música executada por esse não cristão, se feita com excelência, é mais agradável a Deus que a música de um músico cristão mediano. Afinal, se quem deu o dom ao não cristão foi Deus, a execução do dom é adoração ao Senhor, quer queira quem o executa, quer não.

Analisando pelo ensino confessional presbiteriano

Há problemas realmente sérios nesta visão do Keller. O primeiro, mas não o principal, é uma extrapolação daquilo que é entendido como “graça comum”. Conquanto seja verdadeiro que não haja dom que não proceda de Deus (Tg 1.17), isso não pode ser critério para a participação no culto cristão. Se pode, o que impede de termos um ateu, excelente em retórica, sendo bem pago para pregar o sermão preparado por um pastor piedoso, mas que não é tão excelente assim em retórica? Isso beira ao ridículo, eu sei.

Mas há outras questões sérias a se pensar. Esta visão de Keller faz da “excelência na execução” da música a mediadora para que Deus aceite a adoração, retirando o papel exclusivo de mediação que pertence ao Senhor Jesus Cristo.

Como presbiteriano que sou, creio no que está expresso nos documentos de Westminster. Na resposta à pergunta 42 do Catecismo Maior, lemos que em seu papel de Mediador Jesus exerce “as funções de profeta, sacerdote e rei da sua Igreja”. Como sacerdote Cristo ofereceu “a si mesmo uma vez em sacrifício, sem mácula, a Deus, para ser a reconciliação pelos pecados do seu povo, e fazendo contínua intercessão por ele” (resposta à pergunta 44 do CMW – grifos meus).

Esta percepção do ofício sacerdotal de Cristo é importante para entender o seu papel em nossas “boas obras”. Como se pode ler, ainda no Catecismo Maior, nossa santificação, nesta vida é imperfeita por causa dos restos dos pecados que permanecem nos crentes. Em virtude disso, “suas melhores obras são imperfeitas e manchadas diante de Deus” (P. 78).

É por causa disso que lemos no Cap. XVI da CFW, “Das boas obras”, que

“não obstante, as pessoas dos crentes, sendo aceitas por meio de Cristo, suas obras são também aceitas por ele, não como se fossem, nesta vida, inteiramente puras e irrepreensíveis à vista de Deus, mas porque Deus, considerando-as em seu Filho, é servido aceitar e recompensar aquilo que é sincero, embora seja acompanhado de muitas fraquezas e imperfeições” (Seção VI - Grifos meus).

Aquilo que fazemos no culto, na adoração do nome do Senhor, é aceito inteiramente por Deus por causa do nosso Redentor e não por causa de nós mesmos. Mas a CFW, no capítulo XVI, seção VII fala ainda dos não crentes:

As obras feitas pelos não-regenerados, embora sejam, quanto à matéria, coisas que Deus ordena, e úteis tano a si mesmos como aos outros, contudo, porque procedem de coração não purificado pela fé, não são feitas devidamente – segundo a Palavra; nem para um fim justo - a glória de Deus; são pecaminosas e não podem agradar a Deus, nem preparar o homem para receber a graça de Deus;” (Grifos meus).

Fica claro, diante do ensino confessional presbiteriano, quão descabida é a afirmação de Keller. Não há dúvidas de que um músico mediano, mas piedoso e sincero, é mais agradável a Deus que um músico profissional não cristão, pois o mérito ou demérito não estão neles e naquilo que fazem, o mérito é somente de Cristo Jesus, o único que ouviu “este é o meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mt 3.17), por meio de quem o Senhor também tem prazer e se agrada de nós, seus filhos. Não é a excelência, mas o Redentor, que torna o homem agradável diante do Santo Deus. Isso não é dualismo, como afirma Keller, mas nosso entendimento bíblico-confessional.

Analisando pela evidência bíblica

Vejamos, então, as evidências bíblicas do ensino confessional. Ao conversar com a mulher samaritana Jesus afirmou que “vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade, porque são estes que o Pai procura para seus adoradores”. O Pai não procura adoradores que sejam excelentes, mas que adorem em espírito e em verdade, o que só pode acontecer por meio de Cristo. Isto está restrito a crentes, aquilo (a excelência) pode ser realidade na vida de ambos e “independe” de Cristo.

Com isso não quero insinuar que os músicos cristãos podem ser desleixados e fazer o seu trabalho de qualquer forma. Não! Para a glória de Cristo eles precisam ser excelentes, não para ser mais aceitos diante de Deus (isso é assunto para outro texto).

Agora repare, se é verdade que “o que desvia os ouvidos de ouvir a lei, até a sua oração será abominável” (Pv 28.9), indubitavelmente essa é uma realidade também para aquele que toca uma música de louvor no culto, por mais impecável que seja em sua execução: Se ele não dá ouvidos à lei, seu “louvor” é abominável.

Você pode pensar nesse assunto também por outro prisma. Deus rejeitou o louvor do seu próprio povo, quando seu coração estava distante dele. Isso é claramente visto na história de Israel. Por meio de Isaías o Senhor afirmou que estava “farto dos holocaustos de carneiros e da gordura de animais cevados e não me agrado do sangue de novilhos, nem de cordeiros, nem de bodes” – dizendo ainda – “Quando vindes para comparecer perante mim, quem vos requereu o só pisardes os meus átrios?”.

A razão da rejeição, aqui nesse texto, não foi a execução mediana da cerimônia de sacrifício, mas “porque as vossas [dos israelitas] mãos estão cheias de sangue”, daí o convite ao arrependimento para, somente depois, comparecer perante o Senhor (Is 1.1-16).

Foi por meio do mesmo Isaías que o Senhor disse a Israel uma palavra dura, que foi repetida por Jesus aos fariseus de sua época: “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. E em vão me adoram [...]” (Mt 15.8-9).

Isto quer dizer que, mais do que a atitude, o Senhor vê o coração do adorador. No sermão do monte isso fica evidente quando Jesus afirma a seus discípulos que a justiça deles deveria exceder em muito à dos escribas e fariseus, mostrando que os fariseus oravam, jejuavam e davam esmolas pensando em sua própria glória, enquanto os discípulos deveriam orar, jejuar e dar esmolas, para a glória de Deus. Não era uma ação diferente, mas uma disposição do coração diferente, que seria aceita diante de Deus (Mt 5.20; 6.2-8; 16-18).

O ensino bíblico, então, é que não crentes podem até cantar com excelência músicas que exaltam a Deus, mas isso nunca lhe será agradável. Da mesma forma, crentes podem cantar com excelência, mas se não partir de uma motivação correta, também não estarão honrando ao Senhor.

Pra terminar....

Para que o Senhor receba o louvor e a adoração como algo agradável diante dele é necessário que ele seja mediado por Cristo e com uma motivação correta. O escritor aos Hebreus escreveu: “Por meio de Jesus, pois, ofereçamos a Deus, sempre, sacrifício de louvor, que é fruto de lábios que confessam o seu nome” (Hb 13.15).

A adoração é privilégio e prerrogativa daqueles que podem ter “intrepidez para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou pelo véu, isto é, pela sua carne, e tendo grande sacerdote sobre a casa de Deus” – podem se aproximar – “com sincero coração, em plena certeza de fé, tendo o coração purificado de má consciência e lavado o corpo com água pura” (Hb 10.19-22).

O ensino de Keller, a respeito desse tema[2], se recebido como correto, provocará grandes problemas a longo prazo. Veremos igrejas preocupadas com a execução profissional das músicas, sob o pretexto de se fazer o melhor para Deus, a despeito da impiedade dos corações dos “adoradores profissionais”.

Deus nos livre disso!


[1] KELLER, Thimoty et al. Louvor. Thomas Nelson: 2017, Rio de Janeiro. Arquivo Kindle. Posição 5259 de 5969

[2] Aprecio o Keller em outros pontos, mas a despeito disso, vejo com muita preocupação este ensino a respeito da adoração, por isso esta breve análise.

05 fevereiro 2018