27 julho 2011

Quem manipula quem? O problema da abordagem comportamental

condicionamentoToda cidade tem um doido, desses que vivem pela rua e que são conhecidos por todos, virando até lenda em alguns casos. Pois um desses era constantemente motivo de chacota. A razão? Todos os dias ele passava na frente de um bar onde um grupo de amigos parava para beber. E era sempre a mesma história, cada dia um deles oferecia ao doido uma nota de 10 reais e uma moeda de 1 real para que escolhesse. E não é que o doido sempre escolhia a moeda, para a satisfação dos envolvidos na história, que explodiam em risadas?! Foram mais de 2 meses assim até que um dia um dos amigos disse ao doido: “Você é muito burro! A nota de 10 reais vale mais que a moeda de 1” – e emendou: “Você não sabe disso? Escolha a nota!!!” O doido com muita tranquilidade respondeu que não, e o que questionava perguntou o porquê, ouvindo logo a resposta: “É que se eu escolher a nota acaba a brincadeira.”

A piada é engraçada (pelo menos eu acho) e nos remete ao título do texto: quem manipula quem? Em um artigo anterior abordei o problema de focar na mudança de comportamento e demonstrei que isso é ineficaz se queremos ajudar nossos irmãos em seu processo de santificação e conformidade à imagem do Redentor. O maior problema do foco na mudança de comportamento é que acaba por formar “fariseus”, mas há outro problema que será abordado aqui e que eu chamo de “círculo de manipulação”.

Um caso comum

Pense na história de Fernando e Joana. Eles são casados e ambos são membros de uma igreja protestante há alguns anos. São engajados no trabalho da sua comunidade e muito responsáveis em suas atribuições. Porém, em seu lar, os conflitos só aumentavam. Joana cuidava do trabalho de casa, da criação dos filhos e desejava ter a ajuda de Fernando em alguns afazeres domésticos.

Entretanto, o desejo de ser ajudada, que não é mal em si mesmo, acabou por se tornar uma exigência. Ela começou a entender que precisava daquilo para ser feliz e como seu marido não lhe dava a ajuda que queria ela o julgava (“ele é um péssimo marido”) e o punia. A forma que encontrou para punir o marido era recusar-se a ter relacionamento sexual com ele.

O que temos aqui é um bom desejo que se tornou um péssimo senhor. A partir do momento em que Joana pune o seu marido porque este não fez o que ela achava que ele deveria fazer, ela demonstra que está sendo controlada pelo seu desejo e, em termos bíblicos, isso se chama idolatria. É fácil perceber quando um bom desejo se torna um ídolo, basta verificar se pecamos para conseguir o que queremos ou se pecamos porque não conseguimos o que queremos, mas, apesar da facilidade, aqueles que estão obedecendo ao “mau senhor” geralmente não se dão conta. Aqui entra em cena a figura do conselheiro bíblico, que deve levar o aconselhado a enxergar essa situação.[1]

O círculo de manipulação

Ao privar Fernando do relacionamento sexual, além de punir o marido, Joana conseguia também manipulá-lo para fazer o que ela queria, ou seja, ajudar nos afazeres domésticos.

Fernando, por sua vez, satisfazia o desejo da sua esposa ajudando-a com a louça, porém o fazia porque estava interessado mesmo era em sua satisfação sexual, revelando também estar sendo controlado pelo seu desejo.

Ele descobriu também como manipular sua esposa. Quando queria sexo, se tornava o melhor marido do mundo, pois sabia que à noite seria satisfeito. Ela, por sua vez, achava que o manipulava punindo-o com a falta de sexo. A pergunta do título deve ser lembrada aqui: Quem está manipulando quem?

Na verdade, o círculo de manipulação acaba por escravizar e transformar ambos, marido e mulher, em simples marionetes manipuladas pelo ídolo. É o mau desejo que faz com que eles “funcionem” desta forma e mostra que eles estão servindo a um mau senhor.

Esse círculo de manipulação pode causar a falsa impressão de que as coisas vão bem, afinal de contas o marido agora ajuda nos afazeres diários, e a esposa não briga mais nem se nega a relacionar-se com o esposo.

Bastará, porém, que o marido perca o interesse pelo sexo, que é quem está governando sua vida, ou que a esposa entenda que “merece” um marido que faça muito mais do que simplesmente ajudar nos afazeres domésticos para que os conflitos retornem. A solução equivocada será novamente punição da esposa para manipulação até que o marido entenda como virar o jogo para conseguir o que quer da esposa. É um círculo sem fim.

Quebrando o círculo, pelo poder de Deus

Como vimos, a abordagem comportamental gera um círculo vicioso no qual os envolvidos se enganam achando que estão controlando o comportamento alheio, quando na verdade estão também escravizados por seus próprios desejos, que se tornaram “maus senhores”.

Para que Fernando e Joana resolvam de forma efetiva os conflitos, é necessário lidar com eles de forma bíblica.

Tiago afirma em sua epístola que as guerras e contendas acontecem por causa dos prazeres que fazem guerra em nossa carne (Tg 4.1). Ele afirma ainda que o homem não recebe o que pede em razão de o pedido ser para esbanjar nos prazeres da carne (4.3). Após isso acusa, então, os crentes de serem infiéis (adúlteros na ARC). Isso quer dizer que até a oração, quando direcionada pelos “desejos da carne”, constitui-se um ato de infidelidade. Tiago explica isso de forma clara ao afirmar que a amizade do mundo constitui-se uma inimizade contra Deus (4.4). Podemos resumir isso dizendo que os nossos conflitos com o próximo têm como causa o nosso conflito (infidelidade) com Deus, quando em vez de nos submetermos a ele somos escravizados por nossos desejos.

Tiago não estava falando nenhuma novidade. Seu irmão, o nosso Senhor Jesus Cristo, já havia dito que, onde está o nosso tesouro, ali estará também o nosso coração (Mt 6.21). Isso quer dizer que aquilo que entendermos ser o mais importante será o que controla a nossa vida. Isso fica claro quando observamos as palavras anteriores onde ele ordena a não ajuntar tesouros na terra, mas a procurar ajuntar tesouros no céu.

Quando estamos dominados por nossos desejos, estamos “fabricando” um falso deus. Essa é a razão de Paulo afirmar aos coríntios que apesar de todas as coisas serem lícitas, ele não se deixaria dominar por nenhuma delas (1Co 6.12). A razão correta a nos motivar deve ser sempre a glória de Deus, como também ensina Paulo: “Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus” (1Co 10.31).

Diante disso, se o casal quiser quebrar o “círculo de manipulação”, deverá tomar algumas atitudes:

1. Reconhecer a idolatria do coração

Fernando e Joana devem primeiramente entender que estão sendo “movidos” e “direcionados” não pelo Senhor, mas por seus próprios desejos, que constituem os seus “tesouros”, e isso é idolatria. No caso de Joana o ídolo era o “desejo de ser ajudada”, e no de Fernando, o “desejo pelo sexo”.

Esses desejos que não são maus em si, como já foi afirmado, tornaram-se falsos deuses. Eles fizeram falsas promessas de alegria: “Se você tiver um marido mais prestativo será mais feliz”; “se você tiver realização sexual será mais feliz” e para alcançar essa alegria Fernando e Joana estavam pecando um contra o outro, tentando “controlar” um ao outro pela manipulação.

Sem o reconhecimento de que o problema está no coração, que está adorando um falso deus, qualquer mudança será mero paliativo.

2. Confessar o pecado e rejeitar os falsos deuses

Não basta, porém, reconhecer que estão sendo idólatras. Verificado o fato de que estão sendo controlados por um falso deus, Fernando e Joana devem confessar o pecado de buscar satisfação e alegria fora do Senhor. Devem também abandonar os ídolos, dando ouvidos à voz de Deus, que ordena: “Não terás outros deuses diante de mim” (Êx 20.3). A idolatria é uma grande ofensa a Deus, mas em Cristo Jesus há redenção. João afirma que, “se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda a injustiça” (1Jo 1.9).

Além de confessar o pecado contra o Senhor, eles devem também confessar o pecado de tentar controlar um ao outro. Após a confissão do pecado contra o próximo, há ainda mais a fazer.

3. Submeter-se às ordenanças do verdadeiro Senhor

A evidência do arrependimento será uma nova disposição no relacionamento com Deus e com o próximo. A Escritura ordena não somente parar de pecar, mas também assumir uma nova postura. Aos colossenses Paulo explicou isso usando a metáfora do despir e vestir. Ele ordenou aqueles irmãos a terem uma nova postura porque haviam se “despido do velho homem” e se “revestido do novo homem” segundo a imagem daquele que os criou (Cl 3.9-10).

Fernando e Joana deveriam, então, obedecer à vontade de Deus em relação ao casamento. O matrimônio, conforme estabelecido na Escritura, é uma instituição que visa à satisfação do outro. Não poderia ser diferente, pois o apóstolo Paulo afirma categoricamente que o amor não busca os seus próprios interesses (1Co 13.5).

Desta forma, as ordenanças no casamento são sempre em relação ao outro. Paulo ordena ao marido que ame sua esposa, e à esposa que se submeta ao marido, mas não diz para um cobrar do outro (apesar de gostarmos de cobrar do outro, mesmo que não façamos o que nos é ordenado). Se cada cônjuge se esforça para cumprir aquilo que lhe é exigido, há um casamento harmonioso e que glorifica a Deus.

No caso dos pecados específicos, tratados neste artigo, Joana deveria se relacionar sexualmente com o marido ou abster-se disso somente de acordo com aquilo que a Palavra ensina e não para manipulá-lo, a fim de fazer dele um marido mais prestativo.

Quando escreveu aos Coríntios, Paulo deixou claro que o casal não deve privar um ao outro do relacionamento sexual. A razão apresentada é que isso é “devido” ao outro e que o corpo do marido pertence à mulher, da mesma forma que o dela pertence ao marido. A única razão para privar o cônjuge do relacionamento sexual seria a dedicação à oração, mas somente com mútuo consentimento e com a orientação de novamente se ajuntarem para que Satanás não tente por causa da incontinência (1Co 7.1-7).

Fernando, por sua vez, também deveria colaborar com sua esposa nos afazeres domésticos (perdoem-me, machões), mas não em troca de sexo. A motivação correta deve ser o entendimento de que, por ser herdeiro com ela da mesma graça de vida, precisa viver a vida comum do lar, com discernimento e, tendo consideração para com a mulher como parte mais frágil, tratá-la com dignidade (1Pe 3.7).

4. Entender que só há satisfação plena e verdadeira no Senhor

Por último, ambos, Fernando e Joana, devem entender que a satisfação e alegria verdadeiras só podem ser encontradas no Senhor. Não dependemos de pessoas ou circunstâncias, pois temos tudo aquilo de que necessitamos em Cristo Jesus. Paulo compreendeu muito bem isso e pôde afirmar: “Aprendi a viver contente em toda e qualquer situação. Tanto sei estar humilhado como também honrado; de tudo e em todas as circunstâncias, já tenho experiência, tanto de fartura como de fome; assim de abundância como de escassez; tudo posso naquele que me fortalece” (Fl 4.11-13).

Creio não ser uma inferência indevida dizer também “aprendi a viver contente em toda e qualquer situação... com um marido que me ajuda ou com um marido que não me ajuda; tendo ou não tendo satisfação sexual”.

Entender isso será de suma importância porque, ainda que um dos cônjuges não mude a sua postura, o que não é incomum, não haverá motivos para desespero, crises, brigas, pois a satisfação e a alegria estarão sendo buscadas na fonte correta, no Redentor Jesus Cristo. “Nele o nosso coração se alegra, pois confiamos no seu santo nome” (Sl 33.21).

Conclusão

Quando se entende que a alegria e satisfação dependem daquilo que se pode encontrar em pessoas, seja nelas mesmas, seja naquilo que podem dar, sempre haverá frustrações e conflitos, porque pessoas sempre frustrarão as nossas perspectivas, principalmente porque, na maioria das vezes, esperamos mais do que elas podem dar.

Ao invés de manipular pessoas a fim de conseguir o que você quer, peça ao Senhor que sonde o seu coração por meio da Palavra, arrependa-se por estar confiando nas falsas promessas dos ídolos e volte o seu coração para o Redentor.

Entendendo que a plenitude de alegria e satisfação só podem ser encontradas no Senhor, teremos motivos de sobra para nos regozijar e exultar nele, não dependeremos de circunstâncias e, ainda que venhamos a sofrer por fazer sua vontade, podemos estar certos de que somos bem-aventurados (1Pe 3.14).


[1] Sobre esse assunto, leia o artigo do Jônatas Abdias, “Ensaio sobre a minha cegueira: o objetivo do aconselhamento bíblico”

14 julho 2011

“Crentes” teóricos? Essa não!!!

o-perfil-de-um-fariseuÉ notório o grande crescimento dos interessados no estudo da teologia em nossos dias. Os seminários e faculdades teológicas têm se proliferado; na rede mundial de computadores, com uma rápida pesquisa, percebemos que o número de “debatedores” da doutrina é cada vez maior. São arminianos, calvinistas, liberais, dispensacionalistas, carismáticos, pentecostais, cada um defendendo o seu ponto de vista com veemência.

Em princípio, esse quadro deveria nos causar alegria, afinal de contas é muito bom ver pessoas interessadas nas Escrituras e debatendo sobre a Palavra. Mas uma pergunta tem de ser feita: os que têm discutido com tanta paixão têm experimentado um crescimento em santidade decorrente do conhecimento bíblico que professam?

Há um perigo muito grande em tornar a doutrina um fim em sim mesmo. Há na Palavra de Deus advertências sérias quanto a isso. Na epístola de Tiago a ordem é para que os crentes sejam praticantes da Palavra e não somente ouvintes, pois os que são simplesmente ouvintes enganam-se a si mesmos (Tg 1.22). Em seu ministério o Senhor Jesus repreendeu incontáveis vezes os escribas e fariseus, chamando-os de hipócritas, justamente por falarem e não fazerem. Ele chegou a ensinar a multidão, com respeito aos fariseus, da seguinte maneira: “Fazei e guardai, pois, tudo quanto eles vos disserem, porém não os imiteis nas suas obras; porque dizem e não fazem (Mt 23.3).

Eis aí o retrato de um “crente” teórico. É aquele que tem a doutrina na ponta da língua, muitas vezes decora vários versículos bíblicos, é capaz de discorrer com propriedade sobre as doutrinas mais complexas, mas não a vive no seu dia-a-dia. Esse tipo de pessoa, como afirma Tiago, engana-se a si mesmo, pois, como bem afirma John Blanchard, “o crescimento cristão requer mais do que conhecimento da Bíblia; ninguém jamais se alimentou decorando cardápios”[1].

Há no Novo Testamento uma igreja que foi elogiada pelo Senhor Jesus pelo seu conhecimento doutrinário. O Senhor chega a afirmar que aqueles crentes colocaram à prova os falsos mestres que se declaravam apóstolos e os acharam mentirosos (Ap 2.2-4). Pelo visto, aqueles irmãos eram bastante preparados no que diz respeito ao conhecimento doutrinário, contudo, Jesus os repreende dizendo que haviam abandonado o primeiro amor.

Infelizmente, isso é mais comum do que se imagina. Mesmo dentro de nossas igrejas, temos membros que foram doutrinados desde a tenra idade, que frequentam regularmente os cultos, mas por mero costume. A doutrina não tem efeito prático em suas vidas e eles demonstram que, à semelhança dos crentes de Éfeso, deixaram o primeiro amor.

Devemos ter muito cuidado para não ser meramente religiosos e também para não cair na cilada de colocar o amor à doutrina à frente do amor ao Senhor, pois fazer isso é incorrer na quebra do primeiro mandamento (Êx 20.3).

É claro que só se pode amar o Senhor tendo um conhecimento correto de sua Palavra, mas nem sempre conhecimento teológico é sinônimo de piedade e amor ao Senhor.

Fujamos, portanto, do farisaísmo procurando conhecer profundamente as Escrituras, mas com a finalidade de amar e honrar, pela sua prática, o Salvador.


[1] John Blanchard. Pérolas para a vida. São Paulo: Vida Nova, 1993.