Ano após ano a história se repete. Por ocasião da semana chamada “santa” há uma enxurrada de filmes na TV relatando a última semana de vida do Senhor Jesus. Também nas igrejas existe toda uma expectativa em torno das “encenações de Páscoa” e em muitos lugares isso já se tornou mesmo um grande espetáculo.
Entretanto, me chama a atenção, tanto nas produções “seculares” quanto nas religiosas, a grande ênfase no sofrimento físico do Senhor. Geralmente essa é a parte em que o “público” mais se emociona. Não são poucos os que saem da frente da TV, da sessão de cinema ou de uma cantata totalmente impactados e emocionados, por verem que Jesus apanhou tanto e sofreu tantas humilhações por eles.
Conquanto todo esse sofrimento tenha sido, de fato, verdadeiro, terá sido ele a razão da grande angústia do Senhor, quando orou ao Pai pedindo que, se possível, passasse dele esse cálice (Mt 26.39)? Deve ser simplesmente esse sofrimento a razão de os cristãos estimarem o Senhor?
É claro que não quero minimizar o sofrimento físico e humilhações sofridas pelo meu Senhor. Mas temos de ser honestos. Durante a história da humanidade houve vários casos de pessoas que, fisicamente, sofreram da mesma forma ou até mais que o Senhor. Nas Escrituras, vemos, por exemplo, Eliseu chorando por saber o que seria o sofrimento do povo de Israel sob Hazael que iria deitar fogo às fortalezas, matar à espada os jovens, esmagar os pequeninos e rasgar o ventre das mulheres grávidas (cf. 2Re 8.12). O escritor de Hebreus afirma que muitos santos do passado “passaram pela prova de escárnios e açoites, sim, até de algemas e prisões. Foram apedrejados, provados, serrados pelo meio, mortos a fio de espada [...], afligidos, maltratados” (Hb 11.36,37). A história dos primeiros mártires cristãos está também repleta de exemplos de sofrimentos impensáveis.
Se o sofrimento de Cristo consistisse “apenas” no castigo físico ele seria, no máximo, mais um mártir na história da igreja.
Bem-aventurados os que não viram e creram
Essas foram as palavras de repreensão que Tomé ouviu de Cristo Jesus e que foram precedidas de: “Porque me viste, creste?”. Ele havia duvidado quando ouviu que o Senhor havia ressuscitado e afirmou que só acreditaria vendo (cf. Jo 20.24-29).
Estou lembrando esse episódio, pois tenho para mim que a ênfase no castigo físico de Cristo nas encenações seja por uma razão óbvia: O maior sofrimento que o Senhor experimentou não pode ser encenado, ele deve ser entendido e crido. É triste perceber que muitos cristãos, ao lerem o evangelho, não demonstram a mesma emoção que têm nas encenações.
Sabemos, pela Escritura, que desde que o homem pecou ele está sob a ira de Deus. Adão foi advertido de que no dia em que pecasse ele certamente morreria e, claro, isso não se restringiria à morte física (Gn 2.17; Ap 20.14; 21.8). Paulo afirma que essa morte passou a todos os homens, porque todos pecaram (Rm 5.12). Em Apocalipse lemos, finalmente, que o homem que não se rende ao Senhor “beberá do vinho da cólera de Deus, preparado, sem mistura, do cálice da sua ira, e será atormentado com fogo e enxofre, diante dos santos anjos e na presença do Cordeiro” (14.10).
No evangelho, João é enfático ao afirmar que aqueles que não creem em Cristo já estão julgados. Porém, de igual modo, ele afirma que quem nele crê não é julgado (cf. Jo 3.18). Mas qual a razão destes que creem não serem condenados, se também são pecadores?
A razão é exatamente o fato de Cristo Jesus ter assumido a nossa dívida e tomado o cálice da ira de Deus em lugar do seu povo. Essa foi também a razão de sua angústia no Getsêmani. Por amor do seu povo, ele experimentaria um sofrimento incomparavelmente maior que o físico, a quebra da comunhão perfeita com o Pai e a sua ira. Foi isso que o levou a bradar na cruz: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste” (Mt 27.46).
Isaías, bem antes de isso acontecer na história, havia profetizado: “Ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados. [...] ao Senhor agradou moê-lo, fazendo- enfermar; quando der ele a sua alma como oferta pelo pecado, verá a sua posteridade e prolongará os seus dias [...] (ele) levou sobre si o pecado de muitos e pelos transgressores intercedeu” (Leia todo capítulo 53 de Isaías).
Jesus não levou simplesmente uma surra em seu lugar, mas recebeu sobre si a ira do Deus Todo-Poderoso que deveria cair sobre você.
Como nos lembramos disso?
Durante toda a história da redenção podemos ver Deus ordenando a seu povo a lembrança de alguns eventos. Foi assim com a Páscoa. Deus iria derramar sua ira sobre o Egito, matando todos os primogênitos, mas faria distinção não matando os primogênitos do seu povo. Ele ordenou então que se tomasse um cordeiro, colocasse o seu sangue na verga das portas e o comessem assado. Quando o Senhor começasse a ferir o Egito ele “passaria” as casas com sangue. Páscoa significa exatamente isso, passagem, e os israelitas deveriam celebrá-la todos os anos para lembrar que o Senhor os havia libertado do Egito e os livrado também da sua ira. O cordeiro foi morto em lugar dos filhos de Israel.
No Novo Testamento percebemos que foi exatamente na Páscoa que Cristo Jesus, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (Jo 1.29), instituiu a Ceia, como uma lembrança de sua obra (Mt 26.18-30). A Ceia seria em memória daquele que deu o seu corpo e o seu sangue, “o sangue da [nova] aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados” (Mt 26.28).
A Ceia representa para o cristão aquilo que a Páscoa representa para o judeu. É interessante notar que, após a morte do Senhor, não há mais menção às comemorações da Páscoa pela igreja, mas às celebrações da Ceia do Senhor.
Diante da Ceia nos examinamos para comer do pão e beber do cálice (1Co 11.28), entendendo que não podemos permanecer em nosso pecado diante da lembrança do sacrifício do Cordeiro de Deus. Na carta aos Coríntios, Paulo afirmou que eles não poderiam se orgulhar do pecado exatamente porque “Cristo, nossa páscoa, foi sacrificado por nós” (1Co 5.7).
A Páscoa cristã é a Ceia do Senhor. Entendendo-a, você poderá expressar diante dela toda a emoção por ter Cristo Jesus recebido a ira de Deus em seu lugar. Porém, se a Ceia não encena isso, nenhuma outra encenação o fará.