04 setembro 2017

Homens como árvores? - A importância da antropologia no aconselhamento

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Se você está familiarizado com as Escrituras certamente sabe que o título é uma alusão à resposta do cego que foi curado por Jesus em duas etapas, após este lhe perguntar: “Vês alguma coisa?”. A resposta completa foi: “Vejo os homens, porque como árvores os vejo, andando” (Mc 8.24,24).

Talvez você saiba que esta passagem não trata de antropologia, o que é também do meu conhecimento, portanto, não desista ainda da leitura achando que é perda de tempo ler um texto que já começa citando uma passagem “fora do contexto”, mas tenha paciência e continue comigo.

O capítulo 8 do evangelho de Marcos começa com o relato da multiplicação de pães e peixes. Jesus, compadecido de uma multidão que permanecia com ele já há três dias, realizou um milagre multiplicando sete pães e alguns peixinhos e, após a multidão comer de se fartar, ainda sobraram sete cestos de pedaços de pães (Mc 8.1-10).

Depois desse milagre maravilhoso, os fariseus tentam ao Senhor Jesus e pedem um sinal dos céus. Este responde que nenhum sinal lhes seria dado e a passagem paralela, no evangelho de Mateus, informa que, “senão o de Jonas” (Mc 8.11,12; cf Mt 16.4). Jesus estava se referindo à sua morte e ressurreição, que ocorreria mais à frente, perto do fim do seu ministério terreno.

Esse contexto é importante, pois ao passar para o outro lado do mar da Galileia, Jesus advertiu os discípulos que tivessem cuidado com o fermento dos fariseus e saduceus. Diante dessa palavra de Jesus os discípulos começaram a discutir entre si, dizendo: “É que não temos pão” (Mc 8.16). Jesus interrompe e pergunta àqueles que estavam com ele e testemunharam o milagre a razão de estar discutindo sobre o não ter pão. Eles não compreendiam? Ele ainda não tinha entendido quem estava com eles? O Senhor, então, pergunta sobre as duas ocasiões em que ele havia feito o mesmo tipo de milagre. Quantos cestos de pedaços eles haviam recolhido quando Jesus partiu 5 pães para cinco mil? “Responderam eles: Doze!” (Mc 8.19). Quantos cestos eles haviam recolhido quando ele partiu 7 pães para quatro mil? “Responderam: Sete!” (Mc 8.20).

Diante da resposta Jesus perguntou: “Não compreendeis ainda?” (Mc 8.32). Ele já os havia repreendido, também, nos versículos anteriores: “Por que discorreis sobre o não terdes pão? Ainda não considerastes, nem compreendestes? Tendes o coração endurecido? Tendo olhos, não vedes? E, tendo ouvidos, não ouvis?” (Mc 8.17-18). Aqueles homens, apesar de terem visto os milagres, ainda não tinham uma visão correta acerva de quem era Jesus.

É nesse contexto que acontece a cura em duas etapas (Mc 8.22-26). Chegando em Betsaida, um cego é levado até Jesus. Ele o leva para fora da aldeia, aplica saliva em seus olhos, impõe as mãos sobre ele e pergunta se ele estava enxergando. Ele via vultos. Ele via o que parecia ser árvores, mas como estavam andando, ele deduziu que se tratavam de homens. É nesse ponto que Jesus novamente coloca as mãos nos olhos daquele homem “e ele, passando a ver claramente, ficou restabelecido; e tudo distinguia de modo perfeito”.

A história que se segue (Mc 8.27-30) nos mostra a razão de Jesus ter curado aquele homem em duas etapas. Certamente não faltou poder a Jesus, mas uma lição precisava ser aprendida.

Indo para Cesaréia, Jesus perguntou aos discípulos o que os homens diziam a respeito dele. “João Batista; outros Elias; mas outros: Algum dos profetas”, responderam eles. Diante da resposta, Jesus pergunta diretamente aos discípulos: “Mas vós, quem dizeis que eu sou?” – e Pedro, tomando à frente, responde – “Tu és o Cristo”.

A lição é clara. Os homens podiam ter até uma certa noção a respeito de quem era Jesus. Ele, de fato, era um profeta. Mas essa visão acerca do Mestre era tão turva quando à do cego, antes de ser curado completamente. Já Pedro respondeu corretamente. Estava ali o Messias, aquele que havia sido profetizado no Antigo Testamento. Como é que um homem que a pouco foi acusado, junto com os demais discípulos, de não compreender e ter o coração endurecido agora “tudo distinguia de modo perfeito?”. A resposta está na passagem paralela, no evangelho de Mateus. Após a resposta de Pedro Jesus afirmou: “Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue que to revelaram, mas meu Pai, que está nos céus” (Mt 16.17). Somente Deus pode tirar os homens de sua cegueira e fazê-los entender corretamente quem é o Salvador, o Senhor Jesus Cristo.

O entendimento correto a respeito de Jesus é essencial à salvação. Ele mesmo afirmou em sua oração sacerdotal: “E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17.3).

Homens ou árvores?

Entretanto, não é preciso conhecer somente a respeito de Cristo corretamente. É preciso que o homem tenha também uma noção correta acerca de si mesmo, como um pecador que carece da graça e da misericórdia de Deus. Como afirmei desde o princípio, o propósito da passagem da cura do cego não é ensinar antropologia, mas mostrar que só é possível “ver” a Cristo corretamente por uma obra do próprio Deus, no caso, o Espírito Santo. Entretanto, da mesma forma que só foi possível ao cego enxergar os homens, fisicamente, por causa de Cristo, só é possível chegar a uma visão antropológica correta a partir da Palavra de Cristo, que nos revela o Pai.

Calvino ensina que “é notório que o homem jamais chega ao puro conhecimento de si mesmo até que haja antes contemplado a face de Deus, e da visão dele desça a examinar-se a si próprio”[1]. Enquanto não se vê pecador e carente de Deus o homem não buscará a Cristo, mas para que ele chegue à essa conclusão, é preciso que ele entenda primeiro o quão Santo é o Senhor.

Aqueles que creem em Cristo são feitos filhos de Deus e agora fazem parte da família da fé. Agora começa uma nova caminhada, uma caminhada de santificação que tem por fim tornar cada cristão semelhante a Jesus Cristo, pois esta é a razão da nossa eleição, conforme Paulo (Rm 8.29; 1Jo 3.2; Cl 3.10). Conforme a Bíblia, o instrumento que Deus usará para forjar em seus filhos o caráter do seu Filho Unigênito, nosso irmão mais velho, é a Palavra. Ela é viva e eficaz, poderosa para discernir os pensamentos do coração (Hb 4.12). Ela é perfeita e restaura a alma (Sl 19.7). Ela é inspirada por Deus e útil para tornar o homem perfeito e perfeitamente habilitado para toda a boa obra (2Tm 3.16,17). Ela nos revela a Cristo, em quem temos todas as coisas suficientes para a vida e para a piedade (2Pe 1.3).

A despeito disso, muitos cristãos têm deixado de lado a Palavra e se voltado para as ciências sociais a fim de resolver os seus problemas, conflitos, traumas, etc. Talvez você questione: Qual seria o problema disso já que os teóricos tanto estudaram o homem e podem ter boas percepções a respeito dele? Dentre tantas questões, vou me deter à questão da antropologia.

Primeiro é preciso deixar claro que eu entendo que muitos desses homens, que se dedicaram e se dedicam a compreender o homem e seus problemas, têm boas intenções. Eles sabem que há algo errado, buscam descobrir as causas e tentam propor soluções. Agora deixe-me pegar emprestada a figura do cego curado em duas etapas para ilustrar o meu ponto: A despeito da boa vontade, os teóricos das ciências sociais enxergam o homem de forma errada.

O cego via homens como árvores, os teóricos das ciências sociais os enxergam como produto da evolução, como essencialmente bom, como carente de necessidades, etc. Por mais que a observação lhes dê certa noção de que algo está errado, eles nunca compreenderão a razão fundamental dos dilemas humanos. Eles desconsideram completamente a verdade de que o homem foi criado perfeito, à imagem e semelhança de Deus e para viver para a sua glória. Entender que o homem foi criado com um propósito específico e não que ele é simples fruto do acaso, num processo de evolução aleatório, vai fazer uma diferença grandiosa no aconselhamento. O aconselhamento é primariamente para a glória de Deus, levando o homem a estar contente em toda e qualquer situação, à medida em que se submete à Palavra de Deus. Ele não tem por fim principal “solucionar” os problemas do homem.

Por desconsiderarem a Deus e a criação com um propósito específico, os teóricos humanistas também não entendem que houve uma queda, quando Adão caiu em transgressão levando a ele e toda a sua posteridade a estar afastada de Deus (Rm 3.23). Eles não enxergam o homem como um pecador. O resultado disso é que

“um estudo superficial da história da psicologia e de suas patologias propostas revela uma tentativa constante de amenizar a culpa, responsabilizando o meio ambiente, a hereditariedade ou os instintos primitivos evolucionários pelas respostas verbais ou comportamentais”[2],

ou seja, o problema sempre está “lá fora”.

À vista disso, concordo integralmente com o que escreveu Jay Adams:

“Tudo que se pode dizer de Freud é que suas ideias encorajaram pessoas irresponsáveis a persistirem em sua irresponsabilidade e a aumentá-la. Ele deu sua aprovação à conduta irresponsável e a fez respeitável. [...] Freud não fez com que as pessoas se tornassem irresponsáveis; mas forneceu uma fundamentação racional, filosófica e pseudo-científica para as pessoas usarem a fim de justificar-se”[3].

Sem uma antropologia correta, que leve em conta a criação, a queda e a redenção, é impossível tratar efetivamente os problemas da alma. Mais uma vez, recorro à John Babler, que diz:

“O verdadeiro cuidado das almas se importa com o problema fundamental da alma humana, e por isso, a doença do pecado deve ser abordada antes de qualquer outro problema. Munir um aconselhado com mecanismos de adaptação que se limitam a prover alívio temporário pode deixar a sua alma em uma condição devastadora. [...]

O evangelho de Cristo deve ser a prioridade máxima na vida do aconselhado, porque qualquer tentativa de solução que desconsidere o evangelho redentor desculpará o problema, ensinará a justiça própria e apaziguará a culpa, o que endurecerá ainda mais o coração, obscurecendo a compreensão”[4].

Desconsiderar a Deus e o pecado humano, vão levar inevitavelmente a propostas equivocadas de como “consertar” o que está errado. É claro que muito pode ser dito a respeito da antropologia bíblica, mas meu ponto aqui é apontar para a importância de um entendimento correto a respeito do homem a fim de tentar ajuda-lo em seus dilemas. Esse conhecimento só se dá pela Palavra de Deus.

“Adquirir uma perspectiva bíblica equipa o conselheiro para a tarefa de corrigir o que foi arruinado pela busca pecaminosa de uma sabedoria inadequada. O conselheiro deve trabalhar diligentemente na exegese e na compreensão das Escrituras. À medida que as Escrituras revelam o caráter de Cristo, homens e mulheres podem conhecer a Deus. Uma pessoa nunca mais será a mesma depois de ter conhecido a Deus”[5].

Tratar da alma humana sem essa séria consideração é como tentar chegar ao Rio Grande do Sul enquanto dirige pela Br-101 no sentido de Recife. Nem com toda a boa vontade do mundo você acertará. Portanto, não paute o seu aconselhamento pela visão daqueles que enxergam homens como árvores, mas, com a iluminação do Espírito Cristo, aconselhe com as lentes corretivas da suficiente Palavra de Deus.


[1] João Calvino. Institutas, Livro I – p. 42 (Ed. Clássica)

[2] John Babler (editor). Os fundamentos do aconselhamento bíblico – p. 102

[3] Jay Adams. Conselheiro capaz – p. 34

[4] John Babler (editor). Os fundamentos do aconselhamento bíblico – p. 92

[5] John Babler (editor). Os fundamentos do aconselhamento bíblico – p. 98