14 abril 2020

A “ceia online” não une, divide

Quando escreveu sua primeira carta à igreja de Corinto, Paulo havia sido informado por uma família da igreja que um dos problemas que estava ocorrendo ali era de divisão. Uns se diziam de Paulo, outros de Apolo, outros de Pedro e outros de Cristo (1Co 1.11-12), possivelmente o grupo mais problemático, conforme alguns comentaristas do NT.

Este problema da divisão influenciou, inclusive, a forma como os crentes daquela igreja se portavam diante da Ceia do Senhor. No capítulo 11 da carta, a partir do verso 17 o apóstolo Paulo repreende aqueles irmãos afirmando que quando eles se ajuntavam não era o melhor, mas para o pior.

O que estava ocorrendo? Ele volta a afirmar no verso 18 que estava informado haver divisões entre os coríntios e que ele acreditava ser isto um fato. Paulo escreve: “quando vos reunis no mesmo lugar, não é a ceia do Senhor que comeis” (19). Note bem, a despeito de estarem juntos (no mesmo lugar) a disposição do coração dos crentes fazia com que eles se portassem de modo indevido, cada um pensando em seus próprios desejos.

É por isso que ele exorta: “não tendes, porventura, casas onde comer e beber?” (22). A exortação era necessária, pois, apesar de estarem juntos, alguns tomavam “antecipadamente, a sua própria ceia; e há [havia] quem tenha fome, ao passo que há também quem se embriague” (21).

Após esta repreensão há, então, a orientação sobre a maneira correta de se portar diante da mesa do Senhor (23-25). A ceia aponta para a obra de Cristo em favor de sua Igreja e ao realizá-la, anunciamos a sua morte enquanto ansiamos por sua vinda. Após isso, vem mais uma grave exortação: “Por isso, aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor, indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor. Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e, assim, como do pão, e beba do cálice; pois quem come e bebe sem discernir o corpo, come e bebe juízo para si” (28-29).

A respeito deste ponto há controvérsias sobre o que seria “discernir o corpo”. Trata-se de entender que os elementos da ceia (pão e vinho) são distintos do restante da refeição que eles faziam (já que a ceia ocorria num contexto de um ajuntamento para uma refeição mútua) e representavam o corpo e o sangue do Cristo que está espiritualmente presente na Ceia? Ou significa que os que participam da mesa precisam ter um entendimento correto sobre a igreja, corpo místico de Cristo, o que faria com que eles abandonassem as divisões, fruto do egoísmo?

Argumentando que a Ceia é mais que mero memorial, Bannerman afirma acertadamente que as expressões usadas no contexto “apontam, evidentemente, para um discernimento e uma participação espirituais por parte do crente, não do símbolo, mas da bênção significada; e a um pecado terrível e espiritual, não de um abuso e profanação de símbolos exteriores, mas de um abuso e uma profanação de Cristo, que de fato está presente nesses símbolos”[1] (grifos meus).

Entretanto, entendo que o discernimento de que Cristo está espiritualmente presente nos símbolos não descarta a necessidade, também, de um correto entendimento sobre a unidade da Igreja, antes implica isso, afinal de contas, a morte de Cristo foi pelo seu corpo. Na oração sacerdotal Jesus disse: “Eu te glorifiquei na terá, consumando toda a obra que me confiaste para fazer” (Jo 17.4). Um dos resultados da obra de Jesus é descrito por ele na mesma oração: “a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós; para que o mundo creia que tu me enviaste” (17.21).

A igreja de Corinto, em vez de demonstrar esta união ao se reunir para a Ceia, estava fazendo justamente o contrário, cada um pensando em si mesmo em vez de entender que faziam todos parte do mesmo corpo, sendo o momento da Ceia um momento de expressão desta unidade da igreja com Cristo e dos irmãos uns com os outros.

Corroboram com isto as palavras de Calvino ao comentar sobre aqueles que participam indignamente da Ceia do Senhor:

Pois, tal gênero de homens que, sem qualquer centelha de fé, sem qualquer sentimento de caridade, ao tomar a Ceia do Senhor se atropela à maneira de porcos, mui longe está de discernir o corpo do Senhor. Pois, até onde não crêem ser esse corpo sua vida, com a rebeldia com que podem o aviltam, despojando-o de toda sua dignidade; e, por fim, ao recebê-lo assim o profanam e contaminam. Na extensão, porém, em que, alienados dos irmãos e em desacordo com eles, ousam misturar o sagrado símbolo do corpo de Cristo com suas dissensões, não se deve a eles que o corpo do Senhor não seja rasgado e dilacerado, membro a membro[2] (grifos meus).

Diante disso, pense bem! Aqueles que têm advogado a ideia ou, sem nem mesmo refletir teologicamente, já têm feito o que chamam de “ceia online”, estão, na prática, fazendo exatamente aquilo que Paulo estava proibindo aos coríntios: dividir a igreja.

Os coríntios estavam divididos por conta do egoísmo daqueles que não consideravam e não esperavam seus irmãos e o que está por trás da prática da ceia online é a ideia de que não é preciso estar reunido com o corpo, não é preciso o ajuntamento solene no mesmo lugar a fim de participar do sacramento. Eu posso fazer isso da minha própria casa, assistindo a uma transmissão em que um pastor, distante de mim e dos demais irmãos, consagra os elementos. Não importa se não estou juntos aos meus irmãos, eu quero é participar da ceia. A “necessidade” individual está aqui sendo posta em primeiro lugar.

Para aqueles que, como eu, são presbiterianos, é preciso lembrar também daquilo que ensinam os nossos Símbolos de fé. Ao tratar da Ceia a Confissão de Fé de Westminster estabelece que

Nessa ordenança, o Senhor Jesus Constituiu os seus ministros para declarar ao povo a sua palavra de instituição, orar, abençoar os elementos, pão e vinho, e assim separá-los do uso comum para um uso sagrado, para tomar e partir o pão, tomar o cálice (dele participando também) e dar ambos os elementos aos comungantes, e tão somente aos que se acharem presentes na congregação (CFW XXIX.III – grifos meus).

Está bem claro aqui o caráter comunitário da Ceia onde todos os presentes no culto partilham do mesmo pão e do mesmo cálice. Isso fica ainda mais claro no parágrafo seguinte da confissão:

A missa particular ou recepção do sacramento por um só sacerdote ou por uma só pessoa, bem como a negação do cálice ao povo, a adoração dos elementos, a elevação ou procissão deles para serem adorados, e a sua conservação para qualquer uso religioso, são coisas contrárias à natureza deste sacramento, e à instituição de Cristo (CFW XXIX.IV – grifos meus).

Ao comentar estas seções, Van Dixhoorn esclarece:

A última linha do terceiro parágrafo especifica que a ceia do Senhor não deve ser recebida de forma privada. Um motivo pelo qual a Assembleia de Westminster desaprovava que o pão e o vinho fossem levados a pessoas ausentes no culto de adoração foi apresentado no parágrafo primeiro: o objetivo desta refeição é celebrar a comunhão não somente com Cristo, mas também com os demais cristãos.

Um segundo motivo relacionado ao porquê a assembleia desaprovava a comunhão privada é extraído da igreja disfuncional de Corinto: não somente a abordagem individualista dos crentes de Corinto mereceu uma repreensão apostólica (1Co 11.20; cf. 17-22), mas também parece ter sido o padrão estabelecido dos primeiros cristãos ‘reunidos’ [...] partir o pão’ e não o comer em isolamento (e.g., At 20.7).

Um terceiro motivo pelo qual a assembleia trabalhou para banir a prática ainda popular da comunhão privada é sugerido no parágrafo 2 e esclarecido na linha inicial do parágrafo 4: a Igreja Católica Romana há muito ensinava a eficácia da missa para a salvação; os sacerdotes ofereciam missas privadas como um tipo de graça salva-vidas. A assembleia considerava a continuação da comunhão privada um pobre exemplo, mesmo nas igrejas onde a teologia da ceia do Senhor tinha sido corrigida. Como os israelitas que deveriam se lembrar dos rebeldes dos dias pelo deserto, os protestantes deveriam se lembrar dos romanistas do deserto teológico e evitar os caminhos destes (1Co 10.6)”[3] (grifos meus).

Diante do ensino das Escrituras e do que estabelece a Confissão de Fé não há, portanto, a menor possibilidade de realizar a chamada “ceia online”, pelo menos para os presbiterianos.

Aqueles que estão tentando inovar com esta prática estão dividindo o corpo e repetindo erros do passado. Além disso, estão abrindo um precedente perigoso, pois, quando as coisas retornarem à normalidade, o que impedirá estas igrejas de continuarem a celebrá-la online? Mais ainda, estas igrejas acabam por estimular os desigrejados, que entendem não haver a necessidade de se estar ligado a uma igreja local, a permanecerem como estão, pois aquilo que eles antes não tinham, a comunhão da mesa do Senhor, pode ser agora “desfrutada” do sofá de suas casas sem precisarem se submeter aos líderes que o Senhor estabeleceu para a sua igreja, tampouco se envolverem com outros.

Os tempos de pandemia que vivemos têm sido terríveis para aqueles que amam o Senhor e à sua igreja. Entretanto, nada está fora do controle soberano de Deus que diz, por meio de Paulo, em sua Palavra que “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8.28). Em vez de inovações, é tempo, então, de refletirmos a respeito de nossas convicções. É tempo de pensarmos sobre o quanto, de fato, consideramos a Bíblia a nossa regra de fé e de prática. É tempo de voltar os olhos para a história da igreja a fim de não incorrermos em erros do passado.

Almeje e ore para que o Senhor nos abençoe e nos dê mais uma vez a benção de estarmos reunidos como um só corpo, ouvindo sua voz por meio da pregação pública e participando do sacramento em que anunciamos a morte de Cristo em favor do seu povo que, unido, agora anseia pela vinda daquele que está vivo!


[1] Bannerman, James. A Igreja de Cristo: Um Tratado sobre a Natureza, Poderes, Ordenanças, Disciplina e Governo da Igreja Cristã (VOLUMES 1 e 2) . Os Puritanos. Edição do Kindle.

[2] Calvino, J. (2006). As Institutas. (Edição Clássica, Vol. 4, p. 391). São Paulo: Editora Cultura Cristã.

[3] Dixhoorn, Chad Van. (2017). Guia de estudos da Confissão de Fé de Westminster. p. 393. São Paulo: Editora Cultura Cristã.

1 comentários:

Unknown disse...

Muito bom meu irmão. Bem pontuado. A pressa de alguns me parece, guardadas as devidas diferenças, a mesma pressa dos nossos irmãos do passado aos pés do Monte incitando Arão. Sei que não há má fé, mas descuido.