“Pregue o evangelho, se necessário, use palavras”. Há muito tempo ouço essa frase, ora atribuída a Agostinho, ora atribuída a Aquino (vai ver não é de nenhum dos dois[1]), sendo usada como padrão para o testemunho cristão. Geralmente os que citam a frase a usam para afirmar que a melhor e mais eficaz pregação do evangelho é a que é feita com a vida. Há uma variante desse mesmo pensamento, que circula nas redes sociais, que diz mais ou menos o seguinte: “sua vida pode ser a única Bíblia que um incrédulo lerá”.
Confesso que a frase não cai bem aos meus ouvidos e vou explicar o porquê.
É bem verdade que as Escrituras falam sobre a obrigação de o cristão viver o evangelho. Jesus afirmou que aquele que ouve suas palavras e não as pratica é como um homem que constrói a sua casa sobre a areia (Mt 7.26), e ordenou também a seus discípulos que vivessem o evangelho a fim de que os homens, ao verem suas boas obras, glorificassem ao Pai (Mt 5.16). Tiago, seu irmão, exortou seus leitores a não somente ouvirem a Palavra, mas praticarem-na a fim de não se enganar (Tg 1.22) e Paulo, não poucas vezes, falou acerca do testemunho cristão (2Co 8.21; Gl 2.14; Fp 1.27; Cl 1.10; 1Ts 2.12; 1Tm 4.12; Tt 2.7).
Diante de todas essas citações, parece que faz mesmo sentido pensar como a frase citada; porém, uma leitura mais cuidadosa vai demonstrar que em nenhum desses textos há a ordem de pregar com a vida e, caso seja necessário, que se usem palavras. O que os textos ensinam é que aqueles que professam fé no Redentor devem viver coerentemente em conformidade com suas ordenanças.
A questão fica mais clara quando entendemos que Deus se revela de forma proposicional, isto é, por meio de afirmações (ou proposições) registradas nas Escrituras e que, de fato, devem ser vividas no dia a dia. Por isso a Palavra deve ser proclamada e não somente vivida. Ao comissionar os discípulos, Jesus não mandou simplesmente que eles vivessem o evangelho, mas que o pregassem a toda a criatura (Mc 16.14). De igual forma o apóstolo Paulo escreveu aos Romanos: “Como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão se não há quem pregue? [...] E, assim, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo” (Rm 10.14,17).
Aqueles que nunca pararam para pensar neste assunto acabam ignorando que o conceito de somente “pregar com a vida” sutilmente se opõe às ordens claras e diretas da Escritura sobre a proclamação do Evangelho. Há algo ainda pior, aqueles que assentem a essa ideia podem estar se autoenganando e fazendo disso uma “boa” desculpa para “justificar” a sua desobediência à ordem de estarmos preparados para arrazoar a respeito da esperança que há em nós (cf. 1Pe 3.15) ou ao fato de não querer se passar por “chato”, “bitolado”, etc.
Há ainda outras questões sérias sobre o “testemunhar somente com a vida”. Vejamos:
1. Dependência do “interesse” do pecador para a proclamação – Alguns que advogam esta ideia dizem que o “viver o evangelho” é apenas o início, é para despertar nas pessoas o interesse em saber o porquê de viver daquela forma. O problema aqui é óbvio, pois condiciona a pregação ao interesse do pecador. Não podemos restringir a pregação somente àqueles que demonstram algum interesse, mas exortar todos os homens a se reconciliar com Deus (2Co 5.20).
2. Atitudes, em si mesmas, não honram a Deus – A falácia de que somente o modo de vida é bastante para testemunhar o evangelho é facilmente refutada. Basta perceber que existem muitas pessoas honestas, respeitáveis, saudáveis, etc., mas que não conhecem a Cristo, ou seja, ao viver de modo correto não estão testemunhando nada, ou em última instância, estão testemunhando a si mesmos.
Por melhores que sejam as ações, se não tiverem a Cristo como Mediador e a glória de Deus como alvo, são pecaminosas em si e esta é a razão de o Senhor aceitar a boa obra de um cristão e rejeitar a mesma “boa obra” de um não cristão. Não é uma questão simplesmente da ação em si, mas da motivação para a sua efetuação. Isso nos leva a mais uma questão.
3. O responsável pelo “testemunho de vida” deve ser exaltado – Se nossas boas obras só são consideradas como tal por causa de Cristo, ele e somente ele deve ser exaltado. Quando um cristão deixa de falar sobre aquele que efetua em nós o querer e o realizar conforme sua boa vontade, em vez de glorificar a Cristo chama atenção para si mesmo, pois, se não há uma razão ou alguém que o faz ser como é, o mérito é mesmo todo dele. Logo, o que está sendo pregado não é o evangelho, mas “boas maneiras” que, como já foi dito, em si mesmas não exaltam a Cristo.
Para terminar...
A verdade de que você deve viver o evangelho é bendita e, com o auxílio do Espírito, você deve mesmo se esforçar para viver de modo digno do evangelho de Cristo (Fp 1.27). Contudo, não cesse também de falar do livro da lei (Js 1.8). Como ordenado a Josué, procure também meditar nele dia e noite e ter o cuidado de fazer tudo quanto nele está escrito.
Agindo assim você horará ao Senhor com seu viver e o exaltará pregando o evangelho a tempo e fora de tempo (2Tm 4.2 – ARC).
[1] Curiosamente, enquanto escrevia o texto vi no perfil do facebook de um amigo a citação atribuída a Francisco de Assis, com uma tirada perspicaz de um amigo dele: “Faça água, se preciso use água” (Eduardo Bornelli de Castro).
3 comentários:
Milton. O testemunho pessoal só é útil se dirigir o observador à Palavra. "A fé vem pelo ouvir da Palavra de Deus". Bom texto, como de costume!
Rev. Milton, de fato todo aquele que nasceu de novo vive na prática do evangelho. Toda árvore boa da bom fruto,porém o meio de transformação do homem é a pregação do evangelho.Excelente texto.Oloir.
Milton,
Que beleza de artigo. Eu sempre li que foi Francisco de Assis que disse "pregue o evangelho. Se necessário, use palavras". Eu nunca gostei muito do uso que fazem desse jargão, pois desprezam o caráter apologético de nossa pregação.
Parabéns!
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