“Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas convêm. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas” (1Co 6.12).
Seria bom se não fosse preciso, mas tenho de começar afirmando que o texto acima não está ensinando que podemos fazer qualquer coisa que der na cabeça.
Infelizmente a liberdade cristã parece não ser bem compreendida por muitos, que acabam pensando somente em termos de extremos. Em meu primeiro ano de ministério tive como ovelha um adolescente que me perguntou se era pecado ouvir “música mundana”. Comecei a responder dizendo que essencialmente não e antes de eu concluir o pensamento dizendo que seria pecado se fosse uma música que afrontasse o Senhor e a fé cristã, ele voltou a perguntar: “Então eu posso ouvir funk?” Ele se referia àquelas músicas que tratavam a mulher como objeto e com várias (ou quase todas) palavras de baixo calão. Em resumo, o que aquele adolescente pensava era: “ou tudo, ou nada”.
É bem verdade que, em Cristo Jesus, somos verdadeiramente livres (Jo 8.36), mas importa sabermos como lidar como essa bendita liberdade. Nesse sentido, creio que o texto de Paulo aos Gálatas (5.13-15) nos traz uma ótima orientação.
O pano de fundo é a tensão no relacionamento entre alguns judeus e gentios que haviam se convertido, que acabou por ser tratada no primeiro concílio da igreja (At 15). Por um lado, os judeus ensinavam que, mesmo crendo em Cristo, era necessária a circuncisão, segundo o costume de Moisés. Por outro, as práticas dietéticas dos gentios causavam escândalo aos judeus convertidos. A resolução do concílio foi para que não se perturbassem mais os gentios com essas questões e para que os gentios se abstivessem das contaminações dos ídolos (comida sacrificada), das relações sexuais ilícitas, da carne de animais sufocados e do sangue (At 15.20,29).
Veja que interessante, ainda que Jesus tenha considerado puros todos os alimentos (Mc 7.19), por amor ao judeu os gentios deveriam se abster da comida que era lícita. Paulo desenvolve o tema da liberdade cristã no texto de Gálatas, como veremos agora:
1) A liberdade cristã não é uma licença para pecar – “Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; porém não useis da liberdade para dar ocasião à carne” (Gl 5.13a).
Paulo havia ensinado que os gálatas não poderiam se deixar circuncidar, pois seria como se estivessem se desligando de Cristo e procurando justificação pelas obras da lei (2-5). Para os judaizantes, ao ordenar que não se obedecesse à lei cerimonial (que havia se cumprido em Cristo), seria como se Paulo estivesse propondo certa “liberdade para pecar”. Para aqueles que queriam pecar, as palavras do apóstolo poderiam soar como uma autorização para tal.
Ele então se apressa: “Fostes chamados à liberdade, porém...”. Paulo afirma que eles não poderiam fazer da liberdade uma “base de operações” para o pecado. É esse um dos sentidos da palavra traduzida no texto por ocasião.
Quando escreveu aos Romanos, Paulo explicou que eles eram, outrora, escravos do pecado, mas libertados do pecado foram feitos servos (escravos) da justiça. Eles eram, então, livres para “obedecer de coração à forma de doutrina a que fostes [foram] entregues” (6.17-18).
Todas as coisas que são lícitas são aquelas permitidas pela vontade de Deus, revelada nas Escrituras.
2) A liberdade cristã é limitada pelo amor ao próximo – “sede, antes, servos uns dos outros, pelo amor. Porque toda a lei se cumpre em um só preceito, a saber: amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5.13b,14).
Agora Paulo enfatiza que, apesar de termos liberdade para fazer o que é lícito (permitido pela Palavra), em vez de dar ocasião à carne podemos e devemos nos abster de fazer algo lícito, em favor do próximo. Ou seja, podemos usar da liberdade, desde que não venhamos a ferir o próximo a quem devemos servir em amor.
O que é belo aqui é que não somos escravos daquilo que podemos fazer. Creio que este é o princípio que está por trás da afirmação de Paulo: “todas as coisas me são lícitas, mas não me deixarei dominar por nenhuma delas” (1Co 6.12). Há muito crente que acaba se tornando escravo da sua liberdade e, antes que alguém ache confuso, eu já explico: podemos fazer muitas coisas, mas isso não significa que somos obrigados a fazê-las. Alguns se apegam tanto aos seus direitos que ficam escravos deles. Temos plena liberdade para abrir mão desses “direitos” em favor do próximo. Paulo afirmou aos coríntios que deixaria de comer carne por causa da fraqueza dos irmãos que se escandalizariam com ele (1Co 8.13).
Se nos agarramos à liberdade de fazer o que é lícito a ponto de não nos importarmos com os irmãos, temos de admitir que somos dominados por nossos desejos e não por Cristo, que afirmou: “Onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração” e exortou: “Ninguém pode servir a dois senhores...” (Mt 6.21,24).
3) A liberdade cristã nos preserva da destruição – “Se vós, porém, vos mordeis e devorais uns aos outros, vede que não sejais mutuamente destruídos” (Gl 5.15).
Se os gálatas não entendessem que a liberdade não é uma licença para pecar e que é limitada pelo amor ao próximo, acabariam por ser destruídos, pois se morderiam e se devorariam. O ponto aqui é óbvio. Se eu só penso em meu direito e não abro mão em favor do próximo, fatalmente vou brigar por ele.
Se o meu coração é servo de Cristo eu posso “dar a outra face”, “deixar também a capa” e “andar a segunda milha” (cf. Mt 5.38-41), considerando o meu próximo superior a mim mesmo (Fp 2.3). Porém, se o meu coração é servo dos meus desejos, se alguém me bater vai levar de volta, vou brigar pela túnica e em hipótese alguma andarei 1 metro, quanto mais 1.500 metros (1 milha romana).
Como podemos notar, a liberdade cristã é mais uma questão de senhorio (a quem eu sirvo?) do que uma questão de direitos. Como servo dos prazeres você fatalmente estará pecando, mesmo ao fazer coisas lícitas. Entretanto, servindo a Cristo estará livre para servir a Deus, servir ao próximo e não se deixar dominar por nada, além do Redentor.
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