“O que Deus é?”. Esta pergunta, de número 4 do Breve Catecismo de Westminster, traz uma resposta maravilhosa: “Deus é espírito, infinito, eterno e – repare bem o que vem a seguir – imutável eu seu ser, sabedoria, poder, santidade, justiça, bondade e verdade”.
A verdade de que Deus é imutável traz segurança àqueles que confiam em sua Palavra. A segurança da salvação, por exemplo, está firmemente enraizada nesse conceito, o que explica a convicção de Paulo quando escreveu aos filipenses afirmando que estava “plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao Dia de Cristo Jesus” (Fp 1.6).
Entretanto, em se tratando de oração, muitos cristãos não têm levado em conta a doutrina da imutabilidade de Deus. Por essa razão entendem que de alguma forma podem mudar a vontade de Deus, por meio de suas orações.
Enquanto escrevo, me vem à mente um episódio ocorrido em meu primeiro ano de seminário. Eu e alguns amigos tínhamos ido a uma igreja dita evangélica a fim de entrevistar líderes sobre o tema: “a oração muda a vontade de Deus?”. Liguei o gravador e o pastor começou a responder convicto com um firme “sim”. Ele tentou, então, provar biblicamente sua posição, dizendo: “Você lembra a história daquele homem (ele não lembrava o nome de Abraão!) que pediu a Deus para não destruir a cidade se houvesse nela trinta justos?”. Acho que enquanto contava a história ele lembrou que a cidade foi destruída, até que por fim afirmou: “Se a oração não muda a vontade de Deus é melhor servir ao diabo”.
Por mais chocante que possa parecer, o que esse homem disse reflete aquilo que não é dito, pelo menos não tão abertamente assim, por muitos outros cristãos que entendem que Deus deve estar pronto a ceder a seus desejos (ou caprichos?), ao ouvir uma oração feita “com muita fé”. Esses acabam se igualando aos pagãos que, nas palavras de Jesus, “presumem que pelo seu muito falar serão ouvidos”. O interessante é que na sequência desse texto, o Senhor exortou a seus discípulos, dizendo: “Não vos assemelheis, pois, a eles; porque Deus, o vosso Pai, sabe o de que tendes necessidade, antes que lho peçais” (Mt 6.7,8).
Daí, então, vêm aqueles que, não menos enganados, dizem que não é preciso orar, pois Deus já sabe o de que necessitamos e não vai mudar de ideia, caso peçamos o contrário. Esquecem-se, esses, que após afirmar que o Pai sabe o de que seus discípulos têm necessidade, Jesus ordenou: “Portanto, vós orareis assim” (Mt 6.9); e que Paulo ordenou aos tessalonicenses que orassem sem cessar (1Ts 5.17).
Como entender corretamente a oração? Aprendamos com o rei Davi. Ao ler o Salmo 139 você pode notar que Davi tinha convicções bem firmadas a respeito da vontade soberana de Deus em sua vida. Ele escreveu: “Os teus olhos me viram a substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um deles havia ainda” (Sl 139.16). Uma convicção dessas talvez fizesse com que muitos deixassem de orar, o que não foi verdade na vida de Davi, pois, a começar desse Salmo, podem ser encontradas várias outras orações do rei, em diversos momentos de sua vida.
Pois bem, você deve lembrar de um desses momentos. Em determinado ponto de sua vida Davi cometeu adultério com Bate-Seba, que veio a engravidar. Após toda a trama do rei para trazer Urias da guerra a fim de que se deitasse com sua esposa e pensasse que o filho era dele (plano que não foi bem-sucedido) e que terminou com a ordem de Davi para que Urias fosse colocado à frente do exército para morrer o que, de fato, ocorreu, Davi tomou Bate-Seba por esposa e tudo parecia bem. Ele tinha “resolvido” o seu problema (2Sm 11).
Entretanto, Deus enviou Natã a Davi e este foi confrontado pelo profeta acerca de seu pecado. Após arrepender-se, Davi ouviu de Natã que Deus o havia perdoado, mas que por causa do que havia feito seu filho, fruto do relacionamento adúltero com Bate-Seba, morreria (2Sm 12.1-14). O versículo seguinte informa que, após Natã ir para casa, o Senhor fez enfermar a criança (12.15).
O que faria, diante de uma palavra tão enfática do Senhor, um homem que entendia que todos os seus dias estavam escritos e determinados? O texto nos informa: “Buscou Davi a Deus pela criança; jejuou Davi e, vindo, passou a noite prostrado em terra” (12.16). Davi orou e jejuou por sete dias, ao cabo dos quais a criança morreu. Diante disso, Davi levantou-se da terra, lavou-se, ungiu-se, adorou a Deus, foi para casa e alimentou-se. Seus servos, espantados, perguntaram o que ele estava fazendo, pois pela criança viva ele havia jejuado e orado, e agora que era morta ele havia levantado e comido pão.
A resposta de Davi aponta para a sua submissão: “Vivendo ainda a criança, jejuei e chorei, porque dizia: Quem sabe se o Senhor se compadecerá de mim, e continuará viva a criança? Porém, agora que é morta, por que jejuaria eu? Poderei fazê-la voltar? Eu irei a ela, porém ela não voltará para mim” – o texto continua – “Então, Davi veio a Bate-Seba, consolou-a e se deitou com ela; teve ela um filho a quem Davi deu o nome de Salomão; e o Senhor o amou” (cf. 2Sm 12.17-25).
O que pode ser notado aqui é que Davi, ainda que tivesse ouvido de Deus acerca da morte de seu filho, não se privou de clamar ao Senhor, mas com uma atitude de submissão, notada na expressão “quem sabe”, ou, em outras palavras, “se o Senhor quiser...”. Deus havia dito que a criança morreria, mas não havia dito quando e Davi, então, rogou pela misericórdia. Talvez isso soe para alguns como uma contradição, mas é bom lembrar que o próprio Senhor Jesus orou ao Pai pedindo que, se possível, o livrasse da cruz, mas que frisou, “contudo, não seja o que eu quero, e sim o que tu queres” (Mc 14.16).
Aqui o ensino do Breve Catecismo pode nos ajudar mais uma vez: “Oração é um oferecimento dos nossos desejos a Deus, por coisas conformes com a sua vontade, em nome de Cristo, com a confissão dos nossos pecados, e um agradecido reconhecimento de suas misericórdias” (P. 98) – e mais – “Na terceira petição, que é: ‘Faça-se tua vontade, assim na terra como no Céu’, pedimos que Deus, pela sua graça, nos torne capazes e desejosos de conhecer a sua vontade, de obedecer e submeter-nos a ela em tudo, como fazem os anjos no Céu” (P. 103).
A soberania de Deus (ele fará a sua vontade) e a responsabilidade humana (eu preciso orar sem cessar) caminham juntas. Ouvi, certa vez, uma ilustração sobre um puritano que precisava sair de sua casa no meio da floresta para ir à uma vila. Ele vestiu-se, pegou sua espingarda e quando saia sua esposa questionou: “Para que a arma?”, ouvindo como resposta que era para o caso de encontrar algum urso pelo caminho. A esposa, então, disse que a arma não seria necessária, pois se ele estivesse predestinado para morrer naquele dia, morreria, se não, chegaria ao destino. A resposta que ela ouviu do marido foi: “E se no caminho eu encontrar um urso predestinado para morrer hoje, como farei sem minha espingarda?”.
Não divorcie essas duas verdades! Desta forma, ao orar ao Deus soberano e providente, você não tentará mudar a sua vontade. Antes, em submissão, entenderá que ele fará exatamente o que já decretou na eternidade e que, providencialmente, decretou que ouviria orações que estivessem de acordo com essa vontade soberana.
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